Por Nara Rúbia Ribeiro
Quando ainda menina, lia
muito Drummond. Achava um exagero ele dizer que chegaria um tempo de absoluta
depuração, em que “(…) os olhos não
choram./E as mãos tecem apenas o rude trabalho./E
o coração está seco.” Mas hoje eu vi no noticiário uma cena muito
peculiar, e a verdade do poema me veio à alma, imediatamente. Um fotógrafo, ao
tentar retratar a vida das crianças sírias, conseguiu captar não a frieza deste
mundo, mas já a sua consequência. Ele enquadra a criança em sua lente e essa
levanta os braços, rendida, pensando ser uma arma.
Deus!
Que mundo é este, onde a inocência caminha de mãos levantadas e a alma do mundo
não sangra, e os olhos dos homens não choram, e a dor já não nos pode
chocar? Que mundo é este cujos avanços tecnológicos não encontram eco na
evolução moral dos indivíduos e onde só o que conta são os cifrões?
Um mundo cujo colorido já não é convidativo
aos olhos. Onde a beleza é preterida. Onde a pureza dos pequeninos ainda é
roubada e banhada do sangue de seus pares, de seus pais e, não raro, do seu
próprio sangue. Um mundo cujas crianças já têm a esperança prematuramente
envelhecida pela dor que transborda dos noticiários e que não raro floresce ao
seu lado. Um mundo em que, a cada dia, o homem teme mais e mais o próprio homem.
Frequentei um curso, há
um tempo, e algo me deixou sobremodo perplexa. O instrutor mostrava-nos
diversos vídeos com acidentes causados por veículos. Em dada situação, um homem
fora atropelado por não olhar para a sua direita quando um carro vinha na
contra mão. Alguns dos colegas, a maioria jovens entre 18 e 25 anos,
riram da cena. Noutro atropelamento, a maioria riu. Esboçaram alguma comoção,
leve, quando uma criança foi atropelada. Mas, pasmem: um cachorro foi
atropelado e, nesse momento, houve uma comoção geral: “Ah, pobrezinho! Tadinho
dele!”.
A banalização da dor do
outro é hoje tamanha que os jovens se identificam mais e se comovem mais com a
dor de um animal que com a dor de um homem ou de uma criança.
A dor do outro é
estatística. “Quanta mortes, mesmo, na Síria? Quantos desabrigados no Acre?
Quantas mulheres são agredidas por ano? Quantas crianças são estupradas por
parentes próximos?” Não! Essa postura desmerece o infinito que somos,
desautoriza a angelitude a que estamos destinados, desmente a centelha do
Eterno que permeia a alma de cada um de nós!
Necessitamos ver o outro
como parte desprendida, mas ainda ligada a nós por lanços infindáveis de
natureza espiritual. Ninguém pode ser plenamente feliz enquanto um só de nós
estiver de braços levantados, rendida criança assustada pelos estrondos da
guerra, cativa da dor e da morte. Esfomeada de uma Justiça que ela não pode
compreender ou dizer, mas, humana que é, já a pode desejar e de sua falta se
ressentir.
Que esta criança que
hoje vi de mãos levantadas por confundir a câmera com uma arma possa ainda, é o
que utopicamente desejo, levantar novamente as suas mãos, mas não por medo. Que
ela ainda possa, na pontinha dos pés, elevar os seus braços para brincar com as
estrelas.
Link: http://www.contioutra.com/sobre-a-menina-siria-que-se-rende-ao-confundir-camera-fotografica-com-uma-arma/
Nara Rúbia Ribeiro: colunista CONTI outra
Escritora, advogada e professora universitária.
Administradora da página oficial do escritor moçambicano Mia Couto.
No Facebook: Escritos de Nara Rúbia Ribeiro
Mia Couto oficial
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