Experimentar o chão para ser melhor...nesse quarto, não entra ninguém... é só nosso e de Deus...
Barba Azul era
rico. Morava num castelo que tinha cem quartos. O que não estava bem
explicado eram seus múltiplos casamentos e suas esposas desaparecidas,
caso semelhante ao sultão das Mil e uma noites.
Uma jovem se
apaixonou por Barba Azul e se casou com ele. A festa foi linda. A vida,
uma felicidade. Chegou, entretanto, um dia quando Barba Azul precisou
viajar. Ao se despedir, ele tirou da cintura um molho de cem chaves.
"Eis as chaves do meu castelo", ele disse para a sua adorada esposa. "Você
pode entrar em todos os quartos - menos um, o centésimo, o mais
distante. Nesse quarto, não entre, pois será terrível se você fizer
isso." E partiu.
A esposa se pôs
alegremente a visitar todos os quartos, todos maravilhosos, mais que
suficientes para a sua felicidade. Mas, visitado o quarto de número 99,
ficou ela com a chave proibida na mão.
É natural que se pense: "Se era proibida a entrada, Barba Azul não deveria ter deixado a chave...". Note que essa estória é uma variação sobre o mito da queda: Deus enche o jardim de árvores maravilhosas e diz: "Daquela árvore não comereis, porque no dia em que dela comerdes certamente morrereis".
Se a árvore não era pra ser comida, por que a plantou? Quem faz essas
perguntas ainda não entrou no mundo de faz de conta, pensa que se trata
de "história". Mas as "estórias" acontecem na alma, e na alma não há formas de se guardarem as chaves.
Ela abriu o
quarto. E o que ela viu a horrorizou. Corpos mortos. Sangue. O susto foi
tão grande que ela deixou a chave cair no chão. A chave ficou suja de
sangue. Tentou limpar a mancha. Inutilmente. A mancha resistiu a todos
os sabões e lixas.
Volta o marido. Pede as chaves. Vê a chave manchada. Ela deveria se juntar às outras antigas esposas, mortas.
A estória, em
sua versão original, deve ter terminado aqui. Mas algum redator
posterior escreveu um fim idiota no qual os irmãos da curiosa a salvam.
Com o final feliz perde-se a sabedoria da estória. É sempre assim. Os
finais felizes sempre fazem parar o pensamento.
O castelo de
cem quartos é metáfora do corpo humano. Noventa e nove quartos abertos à
visitação do público. Ali, com os visitantes estranhos, tudo são
sorrisos e conversa cordial. Mas o ultimo quarto é o quarto que odiamos;
ali mora nossa parte monstruosa. Gostaríamos de nunca mais visitá-lo.
Gostaríamos de perder a sua chave. Na verdade - isso a estória não teve
jeito de contar -, o dono da casa não possui sua chave. Nós não podemos,
mesmo querendo, abrir o nosso quarto de horrores. Não queremos ver o
que está lá dentro: nós mesmos - o retrato de Dorian Gray -, nossa face deformada, horrenda, monstruosa. Você já teve um ataque de ódio e fúria? Já se viu no espelho assim?
O trágico é
que, se nós mesmos não podemos abrir o nosso quarto dos horrores, é a
pessoa amada, a mais íntima, que possui a chave. E nem é preciso que ela
lhe seja dada. E nem é preciso que seja roubada. A chave aparece,
miraculosamente, na sua mão.
Os inimigos
podem atacar a casa. A batalha com eles me torna mais bonito. Quanto
mais luto, mais feliz fico com minha imagem. O que me torna horrendo é a
visão daquela imagem que mora naquele quarto, e que somente a pessoa
mais íntima tem o poder de soltar.
A chave não
pode ser limpa: a imagem, depois de vista, não pode ser esquecida. No
momento em que ela entrou no quarto, ela assassinou o seu amado Barba
Azul. Aos seus olhos, ele se transformou em outro - aquele que ele mesmo
odiava.
No momento em
que Barba Azul viu a chave manchada, ele compreendeu que ela já vira o
seu lado horrendo. Olhando nos olhos dela, espelho, ele se viu da forma
como se detestava ver. Dali para frente sempre que olhasse nos olhos
dela ele se veria horrendo.
E a odiaria por
aquilo. A estória termina com a morte. Não a morte física, seja da
esposa, seja do marido. O trágico da estória é a morte do amor: o amor
não sobrevive depois que a pessoa amada abre o quarto dos horrores.
Rubem Alves